"Cantiones
profanæ cantoribus et choris cantandæ comitantibus instrumentis atque imaginibus magicis"
(Carl
Orff)
Manuscritos
no Mosteiro
Carmina Burana
é uma cantata cênica de poesias latinas medievais,
pretendida para ser representada e dançada, posta sobre
textos em baixo latim e baixo alemão, os quais foram extraídos
de uma colocação de duzentas peças poéticas
diversas compiladas pelo final do século XIII.
A palavra Carmina
é o plural de Carmen (em português, Canção).
O título inteiro significa literalmente: Canções
dos Beurens; esta última palavra se refere ao fato
de que os textos escolhidos para esta cantata secular foram descobertos
em 1803 em um velho mosteiro beneditino da Baviera, em Benediktbeuren,
no sudoeste da Alemanha.
Esta
cantata é emoldurada por um símbolo da Antigüidade,
o conceito da Roda da Fortuna, eternamente girando, trazendo
alternadamente boa e má sorte. É uma parábola
da vida humana exposta a constante mudança. E assim o apelo
em coral à Deusa da Fortuna (O Fortuna, Velut Luna)
tanto introduz quanto conclui a obra, que se divide em três
seções: o encontro do Homem com a Natureza, particularmente
com a Natureza despertando na primavera (Veris eta facies).
Seu encontro com os dons da Natureza, culminando com o dom do
vinho (In taberna); e seu encontro com o Amor (Amor
volat undique).
A maioria dos
mais de duzentos poemas sacros e seculares remonta ao século
XIII e foi escrita por um grupo profano de errantes chamados Goliardos.
Estes monges e menestréis desgarrados passavam o seu tempo
deliciando-se com os prazeres da carne e os poemas que eles deixaram,
faziam a crônica de suas obsessões por vezes ao ponto
da obscenidade.
Este manuscrito
abrange todos os gêneros, de versificação
erudita à paródias de textos sacros, incluindo canções
de amor e melodias irreverentes e até grosseiras. O fato
de que o texto original destes Poemas de Benediktbeuren
seja executada hoje em dia com tão extraordinário
sucesso artístico, permite ao ouvinte discernir ainda melhor
as intenções de Orff onde sua música não
se expressa claramente.
Como uma antologia,
Carmina Burana apresenta tudo o que o mundo cristão entre
os séculos XI e XII fora capaz de exprimir. Aquela época
não foi secionada como a nossa, nem inibida pelos nossos
tabus. Assim, os autores anônimos dessas saturnálias
escritas não temiam espalhar a chama incandescida pelo
contato inesperado de uma melodia litúrgica e uma blasfêmia,
mais precisamente um priapismo verbal, ou inversamente de uma
nova melodia profana e uma profissão de fé.
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Carl Orff |
Neste sentido,
a coleção original restaura para nós, todo
um cosmo onde o Bem não existe sem o Mal, o sacro sem o
profano e a fé sem maldições e dúvidas:
a oscilação onde se encontra a grandeza da Humanidade.
A dialética
freudiana foi necessária para a redescoberta deste humanismo
medieval até então considerada bárbara e
cruel; uma vitalidade que permitiu ao homem sobreviver ao sofrimento
da guerra, o mundo infestado pela praga em que ele era submetido
à injustiça, à instabilidade, e mantido na
ignorância de tudo que não fosse santificado pelo
dogma. Sabemos que insultos dirigidos contra a autoridade, palavras
ofensivas e blasfêmias que temperavam de maneira acre a
expressão dessa energia vital eram herdadas do mundo antigo
e chegaram ao começo do renascimento na tradição
dos Carnavais e Triunfos que Lorenzo de Medicis
e Rabelais ilustrariam, cada qual por sua vez.
Esta genealogia
espiritual era tão familiar a Orff que ele concebeu Carmina
Burana como apenas o primeiro elemento de uma trilogia intitulada
Trionfi-Trittico Teatrale, que incluiria Catulli
Carmina (1943) e Trionfi dell'Afrodite (1952), uma
obra que revelou a significação do todo: só
o Desejo e o Amor podem capacitar o Homem a viver, lutar e crer.
Frankfurt,
junho de 1937
A
primeira apresentação de Carmina Burana foi na Ópera
de Frankfurt em Junho de 1937. Causou uma grande impressão
sobre o público, e a aclamação mundial que
recebeu a partir daí prova que não perdeu nada do
seu efeito hipnótico.
A trilogia Carmina
Burana é obra coral de exuberante alegria e fortes acentos
eróticos; a obra, inicialmente destinada para representação
como ópera, venceu, porém, nas salas de concerto.
A música é deliberadamente anti-romântica.
É uma música inteiramente original, quase sem harmonia,
baseada só em elementar forma rítmica, acompanhada
por orquestra inédita: principalmente instrumentos de percussão
e vários pianos.
O manuscrito
original inclui poucas melodias anotadas que Carl Orff levou em
consideração, mas não citou diretamente,
ampliando apenas sua atmosfera particular com instrumentos ancestrais
que usou em seu Método, aqueles mais exigidos pela música
contemporânea: uns poucos instrumentos de sopro, sem violinos,
mas uma ampla família de percussão.
Não há
contradição entre a obra do compositor e seu Método:
ambos falam ao mesmo irredutível descendente dos homens
das cavernas, que aparentemente estão tão pouco
à vontade hoje em dia em seu universo de ar condicionado.
Extraído
de http://reduce.to/carminaburana